quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Pode dar certo

Tudo pode dar certo

(01)

Antes de sair confirmo o endereço no convite online que você enviou especialmente pra mim e toda sua imensa lista de contatos. Te comprei um livro grande, de capa dura, com fotos de Dublin porque uma vez você me disse querer passar uma temporada por lá. Você está num grupinho cheio de caras altos e quando me vê, arregimenta um sorriso natural. Sinto uma pulsação estranha em alguma veia da nuca.

Você diz que não precisava o presente e talvez ele não sirva pra nada mesmo. Só quis soar pessoal, mas você poderia ter fingido mais entusiasmo. Aí me dá um daqueles beijos 90% dirigido à bochecha, e os outros 10% maliciosamente no canto da boca, segundo dados gerados pelo meu cérebro idiotamente apaixonado. É bar livre, então me manda ficar à vontade, embora eu saiba que perto de você isso é impossível.

Olho para seus amigos figurões e me sinto não um homem, mas um desastre terrestre, talvez algum descarrilamento de trem ou troço do tipo. Vim com a expectativa de terminar a noite beijando você em algum canto, mas não consigo visualizar a coisa acontecendo. Um jovem advogado diz uma coisa e você ri – e me olha. Um pseudo-surfista com a pele amarela e esturricada fala algo e você toca o peito dele – e me olha. Duas garotas se aproximam com pacotes cobertos de celofane e você torna-se risonha e gasguita e ultrassônica – e me olha.

(02)

Uma hora e meia depois e não estou mais lá. Cansei de ser ignorado. Estou caminhando pela Sarmento Leite em direção ao cerne da Cidade Baixa. Passo numa bodega onde sei que vendem cigarros avulsos. Quando vou pensar em você, me interrompo e peço mais uma ao rapazola no balcão. Aí continuo. Com a língua meio enrolada repasso nossa pequena biografia. Aquele dia que a gente quase finalmente se beijou na escada de incêndio, quando faltou luz; só que segundos depois a luz voltou, e após o episódio a gente não criou coragem de tentar outra vez. Penso nos seus olhos verde-água. Seu torpedo que recebi avisando do pulôver esquecido naquela reunião de pessoas – estava salvo contigo e tinha meu cheiro. Como seu segundo esporte favorito é me fazer de bobo. O primeiro é rúgbi. Meu telefone vibra. Quem fala?

– Onde você está? Não enxerguei mais você. Aparece logo, vamos cortar o bolo.

Digo onde estou e você disfarça a decepção muito bem. Com maestria, até. O telefonema ainda dura alguns segundos de silêncio mútuo. O silêncio pode ser interpretado de duas maneiras: 1) nada a dizer; 2) muito a dizer e nenhuma sugestão de começo. O verdadeiro apaixonado nunca encontra as palavras certas pra dizer, por isso a ausência de uma carta definitiva de amor. O rapazola varre o chão e deita as cadeiras sobre as mesas, logo considero a deixa para dar no pé.

Antes, dou uns goles desnecessários. Caminho junto a um muro alto. Estou atravessando uma rua. Os carros passam por mim com seus farois jogando figuras geométricas na minha cara exausta, de quem não suporta mais essa sensação de desejar fazer feliz alguém que já tem tudo pra ser. Na calçada, meio de propósito, eu corto ao meio os casais de mãos dadas saindo de uma pizzaria. O mundo é a ambientação de uma música do Radiohead.

(03)

Sei que não tenho mais vida própria porque são cinco da manhã e estou na frente do seu terceiro andar. Eu chamo você, sussurrando. Levanto um pouco o timbre, cheio de esperança de que o plano saia como imaginei, dessa vez. Quem sabe gritando. O vizinho do quinto manda eu me foder e respondo que já estou ferrado, no mesmo tom. Aí eu subo na parada de ônibus e diminuo a distância em um andar.

– O que você está fazendo? – ela aparece enrolada num lençol. – Desce daí, seu imbecil!
– Não. Não antes de te dizer uns troços – eu digo. Parece super romântico, mas é de dar pena, na verdade.
– Você está bêbado? – ela me pergunta com um esgar de desprezo no rosto. – Não fiquei chateada por você ter ido embora, se isso é isso que está perturbando você.

Não é isso que está me perturbando.

– Não é isso que está me perturbando. Eu quero falar contigo.
– Me liga amanhã. Você não tem condições de conversar com ninguém – ela diz num tom professoral.
– Não. Não. Chega de amanhã. Falando sério, eu acho que até amo você, sabe? Desce aqui, garota. Vamos falar sobre isso.

Alguns cães da rua se colocam a latir.

– Você vai dormir ou eu vou ter que descer aí e te dar umas porradas? – diz o babaca do quinto andar.
– Pode vir bonitão! Mas antes vá para o quinto dos infernos!

Que coisa mais linda de se ver. Somando a este belo gesto de admiração e carinho em cima da parada de ônibus, apanhar do vizinho do quinto andar no meio da rua é que vai trazê-la pra mim. Alguém aí por acaso viu minha dignidade?

– Por que você está fazendo isso? Vá embora! – ela não consegue terminar a frase porque está meio que chorando.

Aí um cara, uma versão Johnny Bravo sem o óculos de sol e a camiseta preta, chega por trás e a puxa gentilmente pelo ombro nu. E antes de fechar a cortina me olha com uma expressão mista de lástima e satisfação sexual. No meu lugar, O Incrível Hulk ficaria verde e saltaria no pescoço do cara que está dormindo com a garota que o destino reservou a mim. Como meus poderes são insuficientes, só consigo me sentir estranhamente grato. Ele parece um cara legal.

Quem sabe o Johnny Bravo já esteve na minha posição e sabe como é. Talvez ele possa descer e me dar alguns conselhos sobre como não perder muitos quilos com o abismo que vem a seguir; talvez ele possa me indicar algum grupo assistencial cheio de perdedores que fizeram uma última e equivocada tentativa de colocar seu amor não-correspondido nos trilhos e acabaram pegando suas garotas dando para outros.

Estou indo pra casa, mas antes paro na esquina, agarro meus cabelos com as duas mãos e berro desesperadamente com toda minha vontade de arrancá-la de mim. Mas eu sei que não vai funcionar, a não ser que alguém crie uma lei proibindo as garotas de irem pra cama com quem não estão verdadeiramente apaixonadas.

(04)

Mas alguém havia de ceder e esse alguém era eu. Nesse tempo todo antes do incidente aéreo na janela dela, forçando a barra para sermos algo parecido com um casal, nossa relação era apenas um jogo de hesitação. Duas pessoas frequentemente ameaçadas pelo eu-gosto-de-você nunca dito por ninguém, sob pena de um dos lados ter de pagar o preço integral pela sempre provável hipótese da não-correspondência.

De um lado, rapazes como detetives românticos atrás de pistas minimalistas de interesse feminino; do outro, garotas cadenciando a aproximação, sabendo melhor que nós como funciona o jogo: não podem parecer fáceis demais, ou logo serão esquecidas, e nem difíceis demais, ou logo serão desistidas. Onde foi que eu me perdi?

Multipla escolha:

a) No show cover do Pearl Jam, quando fui até a pista, parei a seu lado próximo ao palco e, acidentalmente, nossas mãos se tocaram. Mesmo aquilo me causando formigamento pelo corpo todo, eu recuei, agindo como se tivesse sido apenas um erro de posicionamento;
b) Como ela abriu espaço para eu sentar ao seu ladinho numa mesa com treze convidados, ao me ver chegar estrategicamente atrasado naquele aniversário de uma amiga em comum;
c) Aquele SMS sobre o pulôver com o meu cheiro, esquecido no mesmo espaço para sentar, no mesmo jantar de aniversário;
d) Umas cem vezes ela pôs um violão em meus braços e pediu “Bed Of Roses”. E umas cem vezes passou o resto da noite mostrando como ficaram arrepiados os cabelinhos pouco acima dos joelhos.

Todas as alternativas.

(05)

Se você adora uma certeza, fique longe desse tipo movediço de campo de sedução atulhado de descargas elétricas de ilusão e difusão semântica; onde um olhar, um sorriso, um gesto, uma palavra podem representar mil coisas além de apenas um olhar, um sorriso, um gesto, uma palavra. Você pode também acabar confundindo-se, escancarando intenções estúpidas e incomodando vizinhanças.

Um conselho para mim mesmo, espero que eu aprenda de uma vez: quando uma garota se insinua, não é uma oferta, uma promessa; mas uma suposição, um convite. É como uma dança, isso, um convite para uma dança. É a garota dando uma brecha, deixando você chegar perto e até tocá-la. É ela deixando-se guiar numa breve canção de apresentação. Nada a impede de trocar de par na valsa a seguir. Se ela pisou no seu pé foi porque, na boa, considerou que você não soube conduzi-la ao próximo passo.

Só estou tentando mostrar a você que nesse preâmbulo de história, onde tudo deu errado e acabei me saindo muito bem como o vilão principal, existiu um momento, um triz, talvez tenha sido apenas um dia ou uma semana, não sei, em que a coisa realmente pareceu que ia dar tudo certo.

ESCRITO POR GABITO NUNES

Fonte: Gabito Nunes
http://www.gabitonunes.com.br/p/tudo-pode-dar-certo.html#.Umi9NFPgxCp

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