Tudo pode dar certo
(01)
Antes de sair confirmo o endereço no convite online que você enviou 
especialmente pra mim e toda sua imensa lista de contatos. Te comprei um
 livro grande, de capa dura, com fotos de Dublin porque uma vez você me 
disse querer passar uma temporada por lá. Você está num grupinho cheio 
de caras altos e quando me vê, arregimenta um sorriso natural. Sinto uma
 pulsação estranha em alguma veia da nuca.
Você diz que não precisava o presente e talvez ele não sirva pra nada 
mesmo. Só quis soar pessoal, mas você poderia ter fingido mais 
entusiasmo. Aí me dá um daqueles beijos 90% dirigido à bochecha, e os 
outros 10% maliciosamente no canto da boca, segundo dados gerados pelo 
meu cérebro idiotamente apaixonado. É bar livre, então me manda ficar à 
vontade, embora eu saiba que perto de você isso é impossível.
Olho para seus amigos figurões e me sinto não um homem, mas um desastre 
terrestre, talvez algum descarrilamento de trem ou troço do tipo. Vim 
com a expectativa de terminar a noite beijando você em algum canto, mas 
não consigo visualizar a coisa acontecendo. Um jovem advogado diz uma 
coisa e você ri – e me olha. Um pseudo-surfista com a pele amarela e 
esturricada fala algo e você toca o peito dele – e me olha. Duas garotas
 se aproximam com pacotes cobertos de celofane e você torna-se risonha e
 gasguita e ultrassônica – e me olha.
(02)
Uma hora e meia depois e não estou mais lá. Cansei de ser ignorado. 
Estou caminhando pela Sarmento Leite em direção ao cerne da Cidade 
Baixa. Passo numa bodega onde sei que vendem cigarros avulsos. Quando 
vou pensar em você, me interrompo e peço mais uma ao rapazola no balcão.
 Aí continuo. Com a língua meio enrolada repasso nossa pequena 
biografia. Aquele dia que a gente quase finalmente se beijou na escada 
de incêndio, quando faltou luz; só que segundos depois a luz voltou, e 
após o episódio a gente não criou coragem de tentar outra vez. Penso nos
 seus olhos verde-água. Seu torpedo que recebi avisando do pulôver 
esquecido naquela reunião de pessoas – estava salvo contigo e tinha meu 
cheiro. Como seu segundo esporte favorito é me fazer de bobo. O primeiro
 é rúgbi. Meu telefone vibra. Quem fala?
– Onde você está? Não enxerguei mais você. Aparece logo, vamos cortar o bolo.
Digo onde estou e você disfarça a decepção muito bem. Com maestria, até.
 O telefonema ainda dura alguns segundos de silêncio mútuo. O silêncio 
pode ser interpretado de duas maneiras: 1) nada a dizer; 2) muito a 
dizer e nenhuma sugestão de começo. O verdadeiro apaixonado nunca 
encontra as palavras certas pra dizer, por isso a ausência de uma carta 
definitiva de amor. O rapazola varre o chão e deita as cadeiras sobre as
 mesas, logo considero a deixa para dar no pé.
Antes, dou uns goles desnecessários. Caminho junto a um muro alto. Estou
 atravessando uma rua. Os carros passam por mim com seus farois jogando 
figuras geométricas na minha cara exausta, de quem não suporta mais essa
 sensação de desejar fazer feliz alguém que já tem tudo pra ser. Na 
calçada, meio de propósito, eu corto ao meio os casais de mãos dadas 
saindo de uma pizzaria. O mundo é a ambientação de uma música do 
Radiohead.
(03)
Sei que não tenho mais vida própria porque são cinco da manhã e estou na
 frente do seu terceiro andar. Eu chamo você, sussurrando. Levanto um 
pouco o timbre, cheio de esperança de que o plano saia como imaginei, 
dessa vez. Quem sabe gritando. O vizinho do quinto manda eu me foder e 
respondo que já estou ferrado, no mesmo tom. Aí eu subo na parada de 
ônibus e diminuo a distância em um andar.
– O que você está fazendo? – ela aparece enrolada num lençol. – Desce daí, seu imbecil!
– Não. Não antes de te dizer uns troços – eu digo. Parece super romântico, mas é de dar pena, na verdade.
– Você está bêbado? – ela me pergunta com um esgar de desprezo no rosto.
 – Não fiquei chateada por você ter ido embora, se isso é isso que está 
perturbando você.
Não é isso que está me perturbando.
– Não é isso que está me perturbando. Eu quero falar contigo.
– Me liga amanhã. Você não tem condições de conversar com ninguém – ela diz num tom professoral.
– Não. Não. Chega de amanhã. Falando sério, eu acho que até amo você, sabe? Desce aqui, garota. Vamos falar sobre isso.
Alguns cães da rua se colocam a latir.
– Você vai dormir ou eu vou ter que descer aí e te dar umas porradas? – diz o babaca do quinto andar.
– Pode vir bonitão! Mas antes vá para o quinto dos infernos!
Que coisa mais linda de se ver. Somando a este belo gesto de admiração e
 carinho em cima da parada de ônibus, apanhar do vizinho do quinto andar
 no meio da rua é que vai trazê-la pra mim. Alguém aí por acaso viu 
minha dignidade?
– Por que você está fazendo isso? Vá embora! – ela não consegue terminar a frase porque está meio que chorando.
Aí um cara, uma versão Johnny Bravo sem o óculos de sol e a camiseta 
preta, chega por trás e a puxa gentilmente pelo ombro nu. E antes de 
fechar a cortina me olha com uma expressão mista de lástima e satisfação
 sexual. No meu lugar, O Incrível Hulk ficaria verde e saltaria no 
pescoço do cara que está dormindo com a garota que o destino reservou a 
mim. Como meus poderes são insuficientes, só consigo me sentir 
estranhamente grato. Ele parece um cara legal.
Quem sabe o Johnny Bravo já esteve na minha posição e sabe como é. 
Talvez ele possa descer e me dar alguns conselhos sobre como não perder 
muitos quilos com o abismo que vem a seguir; talvez ele possa me indicar
 algum grupo assistencial cheio de perdedores que fizeram uma última e 
equivocada tentativa de colocar seu amor não-correspondido nos trilhos e
 acabaram pegando suas garotas dando para outros.
Estou indo pra casa, mas antes paro na esquina, agarro meus cabelos com 
as duas mãos e berro desesperadamente com toda minha vontade de 
arrancá-la de mim. Mas eu sei que não vai funcionar, a não ser que 
alguém crie uma lei proibindo as garotas de irem pra cama com quem não 
estão verdadeiramente apaixonadas.
(04)
Mas alguém havia de ceder e esse alguém era eu. Nesse tempo todo antes 
do incidente aéreo na janela dela, forçando a barra para sermos algo 
parecido com um casal, nossa relação era apenas um jogo de hesitação. 
Duas pessoas frequentemente ameaçadas pelo eu-gosto-de-você nunca dito 
por ninguém, sob pena de um dos lados ter de pagar o preço integral pela
 sempre provável hipótese da não-correspondência.
De um lado, rapazes como detetives românticos atrás de pistas 
minimalistas de interesse feminino; do outro, garotas cadenciando a 
aproximação, sabendo melhor que nós como funciona o jogo: não podem 
parecer fáceis demais, ou logo serão esquecidas, e nem difíceis demais, 
ou logo serão desistidas. Onde foi que eu me perdi?
Multipla escolha:
a) No show cover do Pearl Jam, quando fui até a pista, parei a seu lado 
próximo ao palco e, acidentalmente, nossas mãos se tocaram. Mesmo aquilo
 me causando formigamento pelo corpo todo, eu recuei, agindo como se 
tivesse sido apenas um erro de posicionamento;
b) Como ela abriu espaço para eu sentar ao seu ladinho numa mesa com 
treze convidados, ao me ver chegar estrategicamente atrasado naquele 
aniversário de uma amiga em comum;
c) Aquele SMS sobre o pulôver com o meu cheiro, esquecido no mesmo espaço para sentar, no mesmo jantar de aniversário;
d) Umas cem vezes ela pôs um violão em meus braços e pediu “Bed Of 
Roses”. E umas cem vezes passou o resto da noite mostrando como ficaram 
arrepiados os cabelinhos pouco acima dos joelhos.
Todas as alternativas.
(05)
Se você adora uma certeza, fique longe desse tipo movediço de campo de 
sedução atulhado de descargas elétricas de ilusão e difusão semântica; 
onde um olhar, um sorriso, um gesto, uma palavra podem representar mil 
coisas além de apenas um olhar, um sorriso, um gesto, uma palavra. Você 
pode também acabar confundindo-se, escancarando intenções estúpidas e 
incomodando vizinhanças.
Um conselho para mim mesmo, espero que eu aprenda de uma vez: quando uma
 garota se insinua, não é uma oferta, uma promessa; mas uma suposição, 
um convite. É como uma dança, isso, um convite para uma dança. É a 
garota dando uma brecha, deixando você chegar perto e até tocá-la. É ela
 deixando-se guiar numa breve canção de apresentação. Nada a impede de 
trocar de par na valsa a seguir. Se ela pisou no seu pé foi porque, na 
boa, considerou que você não soube conduzi-la ao próximo passo.
Só estou tentando mostrar a você que nesse preâmbulo de história, onde 
tudo deu errado e acabei me saindo muito bem como o vilão principal, 
existiu um momento, um triz, talvez tenha sido apenas um dia ou uma 
semana, não sei, em que a coisa realmente pareceu que ia dar tudo certo.
ESCRITO POR GABITO NUNES
Fonte: Gabito Nunes
http://www.gabitonunes.com.br/p/tudo-pode-dar-certo.html#.Umi9NFPgxCp