O material aborda pontos muito interessantes, mas muitas vezes acaba fazendo umas análises meio estranhas. Mas tem boas tiradas...
“Os
abrigos precisam de educadores preparados, de uma estrutura afetiva consistente e
de uma metodologia para lidar com as especificidades da sua população, em
especial a dos meninos e das meninas mais sofridos, como os que viveram na rua
ou sofreram maus-tratos.
O abrigo, como ambiente coletivo, é uma possibilidade para o
desenvolvimento da
criança ou do adolescente, mas não é uma família.
(...)
Quando
não se tem clareza do projeto, pode-se, sem ter consciência, desviar-se dele
e sabotar objetivos importantes. Por exemplo, ao desenvolver uma relação muito forte
com os jovens, o que é considerado necessário e positivo, pode-se, sem
perceber, manter
o jovem no abrigo, boicotando sua autonomia. Por outro lado, em um movimento
inverso, o educador pode tender a expulsá-lo em momentos de crise. O educador
precisa estar em constante reflexão, percebendo seus próprios sentimentos e emoções, e relembrando o propósito de suas ações.
(...)
O
abrigo vive muitas contradições. É
importante entendê-las para poder lidar com
elas ou mesmo suportá-las. A contradição entre o espaço público e o privado é sempre tema de debates.
(...)
Há
muitas fiscalizações nos abrigos que
às vezes são arbitrárias e contraditórias, com
poder de colocar o abrigo em situação de submissão, deixando-o sem possibilidade
de autonomia, solapando seu trabalho. (...)Paralelamente, é importante que os
órgãos fiscalizadores mantenham o diálogo constante
com os abrigos, instrumentalizando-os, capacitando-os, supervisionando-os, trabalhando e refletindo.
(...)
Quais
as diferenças e as semelhanças entre o abrigo e a família? O que é ser pai e mãe e o que é ser educador social? Deve o abrigo simular a estrutura da família e os
papéis de pai e mãe? Ou o abrigo pode ter outra estrutura, também eficiente, com
educadores sociais que desempenham papel afetivo materno e paterno sem se
colocarem
no lugar de pai e mãe? Neste debate, surgem dois movimentos principais: encontrar
as semelhanças entre estes dois papéis e encontrar as diferenças.
Focalizando-se
o educador social, na busca das
semelhanças com a família, encontramos
o desejo de garantir o afeto, a privacidade, a intimidade, a constância. Na
busca das diferenças, está o desejo de garantir o distanciamento adequado, a
manutenção da intencionalidade e do foco educacional, a qualidade da relação
e do profissionalismo.
(...)
Cada vez mais acredito que o caminho é uma rede de solidariedade e apoio entre os próprios jovens.(...)
Mas, duas semanas antes dessa data, dois meninos se atracaram por bobagem. Eu segurei um deles. Então ele veio, agarrou esse menino, levou para o quarto. Eu fiquei assustado, pois o outro
era muito forte, estava treinando boxe. Mas ele jogou o que estava brigando na cama e disse: ‘Meu! Presta bem atenção no que você está fazendo. Nós, aqui,
temos que cuidar de nós mesmos. Não temos
mais ninguém. Você não aprendeu nada? Não cresceu?’ Dali a
pouco, eles estavam os dois sentados, abraçados, chorando. Eu ali do
lado, só observando. Depois de uma hora, entrou o outro menino da briga e começou uma conversa.
(...)
O que é autonomia para
este grupo de profissionais?
• A autonomia é uma
conquista, não algo dado. É desenvolver recursos para viver por si mesmo. Poder gerir sua própria vida, sendo capaz de fazer
escolhas e tomar decisões. É poder desejar e assumir o próprio desejo.
• É conseguir se expor e aceitar todos os seus lados, podendo
aceitá-los e integrá-los. É não ter vergonha de ser e poder ser diferente.
• É aprender a se diferenciar do outro para então fazer parcerias.
Ter autonomia
é poder participar da cultura, construir seu espaço, adquirir os
códigos
da sociedade.
(...)
“Para educar uma criança, é preciso
toda uma aldeia.”
Tradição africana.
(...)
Para
desenvolver sua autonomia, o jovem necessita de outros
parceiros,
outros atores sociais, que fazem parte de sua rede de apoio. Esta é a
característica
de incompletude do
abrigo.
(...)
Manter
espaço aberto e contínuo para diálogo e
participação – a criação de espaços
de expressão, discussão, escuta, compreensão dos conflitos, assembleias, grupos
de fala, rodas de conversa e participação na confecção das regras da
casa são algumas atitudes importantes. Dessa forma, solicita-se ao jovem
sua adesão e participação na gestão e organização da casa, nas tarefas diárias, nos afazeres cotidianos.
(...)
Observação
sempre atenta – é preciso desenvolver entre os educadores o hábito de
observar, registrar e discutir em equipe tudo o que acontece no abrigo. É importante aprender a ouvir
o que não é dito.
(...)
Incentivar
a vida fora do abrigo – os vínculos
de afeto e pertencimento devem ser
fortalecidos nas crianças e nos adolescentes, ampliando-se seu universo para
fora do abrigo (...) aprender a lidar
com dinheiro, conseguir se locomover pela cidade, saber acessar os serviços públicos etc.
(...)
Cuidado
para não estigmatizar – evita-se
colocar placa na frente do abrigo ou identificação
no veículo que transporta os jovens, ações que ajudam a evitar a
estigmatização deles. Evita-se também chamá-los de “internos” ou “abrigados”, já que são crianças ou adolescentes como outros quaisquer.
(...)
Muitas
vezes a transgressão está comunicando algo que os jovens não querem dizer ou não sabem
como dizer.
(...)
No
cotidiano do abrigo, as crianças e os jovens precisam elaborar o abandono.
(...)
Com
o menino que já viveu na rua é, em
geral, diferente. Sua capacidade de ir e vir é
muito desenvolvida. O que ele precisa é manter os compromissos, já que é,
muitas vezes,
disperso, não se fixa, é “descolado”. Tudo para ele, às vezes, parece
descartável. O trabalho nesse caso é ajudá-lo a se vincular, a se manter, a
permanecer.
(...)
O
abrigo não pode ser o lugar de conforto total, deve impulsionar o desejo de eles saírem
para
ter seu próprio espaço.É
importante trabalhar o sentido da separação para que não tenham medo de
se
revincularem. É preciso também tirar o medo de ir para o mundo, porque ele pode
contar com as amizades (vínculos) feitas no abrigo, com as outras crianças, adolescentes e adultos.
O
grande apoio na saída é a rede na
comunidade e no próprio abrigo. Ninguém sobrevive
sozinho e toda a rede de apoio construída dentro do abrigo e da comunidade deve estar e se manter presente também na saída.
(...)
Caminhos próprios
“Já tivemos duas adolescentes com o poder familiar
destituído porque ambas as mães tinham problemas psiquiátricos. Tentamos uma
reaproximação com a família, mas elas não queriam. Tinham medo de enlouquecer como
as mães. Ficaram com a gente, e foram adolescentes bem difíceis. Mas estudaram,
conseguiram trabalho. Uma se casou, tem filhos. Conquistaram suas casas,
construíram suas histórias. Depois de um tempo, foram procurar suas mães. E ambas hoje
vivem com elas, ajudando-as no tratamento, a manter a casa. São histórias que
fazem a gente pensar nas mudanças de padrão de relacionamento. Aprendemos a esperar
que as coisas aconteçam no seu próprio ritmo que, às vezes, é diferente do que imaginamos.”
Silmara Marazzi, Abrigo Butantã
(...)
Ferramentas essenciais para a saída do abrigo
(...)
Criar
uma rotina que favoreça o exercício cotidiano de autonomia e responsabilidade dentro
do abrigo. Os jovens devem assumir a administração da casa, revezar-se
nas tarefas, e as jovens mães, assumir o cuidado de seus filhos.
•
Fazer um trabalho de “educação financeira”. Com que gastar o dinheiro? Onde
comprar? Como economizar? Os jovens são estimulados a começar a fazer uma poupança. (...)
Proporcionar
o contato entre os jovens residentes e os que já saíram do abrigo.Organizar
encontros, rodas de conversa, para ajudar a desfazer medos e fantasmas, saber das dificuldades reais e, ao mesmo tempo, das
possibilidades.
(...)
Visita bem-vinda [Su:
PERSPECTIVA]
Um dos meninos que morou no abrigo, hoje já um adulto,
concursado, trabalha no Hospital das Clínicas, foi lá outro dia fazer uma
visita. Claro que ele tem uma vida ainda difícil, de batalha, mas
conquistou uma vida estruturada. Está seguindo o caminho dele. Ele contou
do trabalho, dos outros meninos com os quais ainda mantém
contato... Eu pensei o quanto essa visita foi importante para os meninos da casa... É um mote para eles pensarem no seu próprio plano de
vida. Sentirem que têm uma história, um caminhar que é de cada um, do qual fazem parte a família, os amigos, a escola, o emprego, o
trabalho.
Um caminhar que quem saiu já está conseguindo fazer.
Depoimento de um coordenador de abrigo.
(...)”
*negrito meu
Fonte: 3 Imaginar para Encontrar a Realidade - reflexões e propostas para o trabalho com jovens em abrigos
http://www.fazendohistoria.org.br/downloads/3_imaginar_para_encontrar_a_realidade.pdf
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