Trecho de um conto (Morte Inventada)
Miguel - o escritor
Afrânio - o empresário
Teodoro - o cliente
Alô. “Miguel?”. Hã. “Tudo bem, amigo?”. Tá tudo bem, mas fala quem é. “Desculpa, Miguel. Meu nome é Teodoro, eu sou amigo do Afrânio. Ele comentou algo de mim pra você?”. De quem? De quem pra quem? “O Afrânio, ele co...” Sim, sim. Quero dizer, não. Ele não comentou nada com ninguém. Mas tudo bem, fala aê Afrânio. “Teodoro”. Whatever. “Hã?” Tanto faz, fala aê Afr... Teodoro. “Então cara...” Então o que? “Quanto é?” É a primeira vez? “É. Mas vai dar certo cara.” Hã. “Vai dar certo.” Claro que vai dar certo meu amigo. É só você pagar e eu faço o serviço oras! “Mas então Miguel, quanto é?” Santa paciência. Amigo, como que eu vou te dar um preço assim? Quanto é, quanto é... o que você quer? Essa é a primeira pergunta! Não é você quem faz a pergunta primeiro. É você quem vai escrever? “Não...” Então pronto! Então... “Eu posso pagar, Miguel. Eu sei que seu trabalho é bom.” Eu sei que meu trabalho é bom. Todo dia tem um me ligando com esse mesmo papo. Mas me diz aí Teotônio. “Teodoro.” Sim, whatever. “Eu quero uma autobiografia.” Sim, mas quem é você? O que você fez pro mundo? Qual foi sua relevância? “Precisa disso tudo?” Na medida do campeonato tanto faz. “Eu sou um poeta.” Hã. “Eu já escrevi para muita gente.” Seu nome é Teodoro de que? “Teodoro Bernardes.” Ah sim claro! Nunca ouvi falar, cara. “Então, esse é o problema. Ninguém me conhece porque eu não me fiz por conhecer, cara.” Tá, e o que eu tenho a ver com isso? Você tá me ligando pra dizer que se fudeu ou pra eu escrever seu livro? “Cara, se você não fosse tão bom eu já tinha xingado a sua mãe.” Whatever. “Então, cara. Eu quero ter uma biografia falando de toda a minha carreira.” Então vai me explicando aí que toda carreira foi essa. “Lembra de 2x2 são quatro?” Sim, Fernando Pessoa. “Não cara, fui eu que escrevi.” Puta que pariu. Agora o Afrânio tá dando meu telefone pra esquizofrênico! Meu amigo olha só, eu tava numa boa até você ligar. Continue escrevendo, sendo poeta, whatever, mas a gente se fala outra hora falou? Tu tu tu tu tu... “Alô”. Ô Afrânio, que porra é essa de você ficar dando meu telefone pra maluco psicótico que acha que escreveu 2x2 são quatro pro Fernando Pessoa? “Ih Miguelito, esse camarada é bom!” Ah, é bom? E se ele é tão bom assim porque você manda ele ligar pra um escritorzinho de merda que ele nunca viu na vida pra escrever um livro sobre a vida dele? “Miguelito! Deixa de ser quadrado, rapá! Os tempos são outros. Você sabe de tudo no mundo? Você é foda mesmo!” A única coisa que eu sei é que não ficar batendo palmas pra maluco é evitar problemas. “Miguelito, atende o rapaz. Deixa de ser quadrado. Pensa no din din! Ele tá disposto a pagar, meu amigo. Olha, não vai se esquecer dos meus 10% heim? Trato é trato!” Cara, eu falei pra você me adiantar mas não disse pra você perder o bom senso, caralho. “Miguel, todo bom artista pelo menos um dia na vida tem que jogar o bom senso no lixo!” Silêncio. “Miguelito?” Hã. Eu não sou artista, porra. Sou escritor. Aliás, não sei se dá pra me chamar assim já que só eu e você sabemos disso. “Miguelito, Miguelito...” Tá... a tanto faz! Deixa ele retornar que eu dou meu jeito. “Trato é trato?” Trato é trato. Até com você. Tu tu tu tu... Alô? “Eu sabia que você ia retornar.” Então me explica essa baboseira direito aí. “Eu sou poeta.” E eu não sou gravador. “Desculpe.” Eu já sei que você escreveu 2x2 são quatro do Pessoa. “Tá vendo! Dá pra saber no meu estilo!” Não Teo, você me disse alguns minutos atrás. “Teodoro.” Ah sim, claro. O que eu posso te adiantar é que biografia é mais caro. Autobiografia feito por outra pessoa ainda não consta na minha lista de preços. “Mas a gente pode começar a incluir essa opção.” Tudo depende de tudo. “Tudo depende da minha disposição.” É, eu tô vendo que você tem muita. “Sim, deixa eu terminar de te contar então.” Por favor. Não ligue se você ouvir algum barulho. Eu tô lavando a louça. “Não, tudo bem. Eu também estou molhando minhas plantas.” Hã. “Então, é o seguinte. Eu sempre escrevi para outras pessoas, mas acabou que toda a minha obra ficou fragmentada...” E capitalizada... “Posso terminar?” Sim, desculpa. “Grato. Mas como eu ia dizendo, eu compus para outras pessoas e minha obra está em tudo.” E agora você vai assumir? “Vou jogar tudo no ventilador.” Nossa... “Você acha que é capaz?” Meu amigo, eu tô em mais vantagem do que você. “Por que?” Tem outra pessoa pra te ouvir e ainda por cima escrever essa bosta toda? “Olha que tem...” Então passar bem... “Não, não... calma! Eu não terminei de contar tudo.” Sou todo ouvidos. “Como se não bastasse eu ser roubado, toda clientela desapareceu.” Roubado? Bom, eles devem ter aprendido a escrever, né? “Só se foi comigo.” Sei. “Todos esses autores hoje se vangloriam com obras que eu compus.” Amigo Teodoro, Machado de Assis, Fernando Pessoa, Augusto dos Anjos estão todos mortos! Como que eles se vangloriam de alguma coisa? Nem com a brincadeira do copo! “Mas esses não foram os únicos.” Cara você deve fazer até o roteiro do programa do Faustão então, heim. “Não brinca, Miguelito.” Olha só, “Miguelito” é só pros íntimos. “Desculpe, Miguel.” Hã. Tá, mas quantas páginas? “Tanto faz.” Tanto faz? Bom, então vai ser mais fácil do que eu estava pensando. “Também não é assim. Eu não quero um conto sobre a minha vida, eu quero uma biografia. Aliás, uma autobiografia.” Você sabe bem o que quer! Sim, tanto faz. Mas quantas páginas amigo? Sou eu que tô pagando a ligação! “Quer que eu te ligue?” Por favor. “Ok.” Tu, tu, tu tu... “Alô.” Sim, sim... vai falando. Agora você pode falar à-vontade. “Então, quero umas 300 páginas.” Você não é humilde heim. “Quanto?” Dois mil reias. “Eu te dou dois mil antes e dois mil depois. Se ficar muito bom eu te dou dois mil pra você passar o natal.” Aham. “Fechado?” É. “Eu tô gravando a conversa, cara. Fechado?” Fechado. “Então até mais.” A gente se fala. Tu, tu, tu ... “Alô.” Ô Afrânio, ele fechou por dois mil. “Que ótimo Miguelito!! Eu não falei que o cara é bom? O rapaz tem talento!” Quando ele pagar eu te dou a comissão. “E quando ele vai pagar?” Quando eu terminar de escrever, porra! “Ahhhh, sim claro! Não tem problemas Miguelito, eu vou procurando mais clientela pra gente.” Olha cara, chega. Essa vai ser a última vez. “Ah Miguel, você tá falando isso há quanto tempo? Deixa de ser bobo, cara!” Quem sabe da minha vida sou eu. Aprende a escrever e deixa que eu te agencio então, Afrânio. “Não é bem assim, Miguelito. Nós somos parceiros de negócio, cara. Aqui é que nem uma empresa. Cada um tem uma função.” Minha função é parar de escrever. “Você não pode parar de escrever assim como eu não posso parar de...” Enganar. “Pára com isso, Miguelito! É o nosso trabalho.” Era o meu hobby. “Tudo bem, mas pensa bem amigo. Você é talentoso!” Hã. “Tudo bem. Quando ele te pagar você me liga pra me avisar porque eu tenho que depositar um dinheiro pra minha filha.” Tudo bem. “Um abraço Miguelito!”. Tá. Tu, tu, tu, tu...
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