11.01.2018
Equipas de rua: Uma dose ou uma injeção de segurança
A toxicodependência continua a ser um problema oculto do Melhor Destino Turístico Europeu de 2017. O rosto do vício é desconhecido e nos bairros germina uma sociedade com regras próprias.
O trabalho das equipas de rua, muitas vezes incompreendido, que previne cenários mais extremos.
É uma manhã fria de dezembro. O bairro do Aleixo recebe os familiares estrangeiros. A carrinha da Norte Vidacomeçou cedo a habitual ronda pelos bairros da cidade. A equipa de rua conhece-lhe os cantos, os rostos e os perigos. Tem-lhes respeito. É uma manhã fria, mas calma, dizem. No entanto, as pessoas andam apressadas, falam alto e gesticulam freneticamente.
Há, no bairro, hierarquias que poucos conhecem, que a poucos são permitidas entender. Os de fora só podem entrar se ali trouxerem algo absolutamente necessário. É importante ir vivendo. Substituir as seringas usadas por novas, melhores, que não entupam facilmente nem firam a pele. Beber água, em pequenos goles, como pedaços de vida normal que não conseguem ingerir de supetão. Comer. Lembrar-se de que são humanos, de que não estão acima da vida e da morte, mas de que caminham entre elas. Respirar. Parar para ouvir outras vozes que não as da droga.
As vozes da equipa de rua chegam-lhes como pequenos lembretes de normalidade. Alguns recados picam mais do que as seringas que vão largando no chão. João, o enfermeiro, só vê as feridas que a pele expõe, nas pernas e nos braços pisados. As duas assistentes destoam num ambiente marcadamente masculino e distribuem pão e seringas limpas. Um kit de vida, para quem se recusa a viver.
A maior parte pede “prata”, papel de alumínio para “fumar”. Muitos pedem seringas e deixam as usadas em caixas amarelas hermeticamente fechadas. Uns queixam-se de dores, ou de fraqueza. Há muito que não têm vontade de tomar banho, ou de escovar os dentes e o cabelo. Esquecem-se do que são para além das faces da droga e dos becos por onde ela os conduz. Conhecem as ruas, mas já esqueceram as paredes de casa.
O bairro do Aleixo é apenas uma das zonas de intervenção das carrinhas da Norte Vida. Sobre rodas, o projeto também atende utentes em Ramalde, Pinheiro Torres, Francos e Pasteleira, isto é, na zona ocidental da cidade do Porto.

Foto: Carlos Romão
O projeto Norte Vida foi criado em 1991, antes mesmo da promulgação da lei de descriminalização do consumo de drogas, em 2001 (Lei nº30/2000, de 29 de Novembro), e dedica-se à promoção da saúde de toxicodependentes. A redução de riscos e minimização de danos tem objetivos muito distintos da prevenção, do tratamento ou da reinserção. Pretende, sobretudo, trabalhar a relação que o indivíduo tem com as substâncias psicoativas. A Organização Mundial de Saúde reconhece os procedimentos da redução de riscos e minimização de danos como boas práticas, sobretudo na prevenção do VIH/SIDA. Também na Estratégia da União Europeia de Luta contra a Droga (2005-2012), a estratégia é considerada fundamental para a redução de doenças infecciosas.
Manuela Moreira integra a equipa de rua da Norte Vida desde 2006. Lembra que, no início, não havia um seguimento dos utentes. “A partir de 2009, assistiu-se a um reforço das respostas integradas. Passou a existir uma carrinha que atuava das 9 às 19 horas e a equipa era composta por um maior número de elementos e era conseguida uma maior cobertura territorial. O investimento nesta área passou a ser mais evidente nessa altura e foi possível, a partir daí, fazer uma melhor identificação da população na rua e dos seus problemas. Passou a haver um acompanhamento diário e respostas mais articuladas com outras estruturas da rede, para os utentes poderem dar um salto para projetos de vida mais estruturados.”
Todavia, desde a aprovação da lei que prevê a descriminalização do consumo, ainda não foram asseguradas as condições que foram pensadas em 2001. As salas de consumo assistido, as chamadas salas de chuto, ainda não passaram do papel, por oposição da Câmara Municipal do Porto. A 14 de dezembro de 2017, o PÚBLICO noticiou os resultados de um estudo encomendado pela Assembleia Municipal, que demonstraram que a maior parte dos inquiridos, concordava com a medida. 98% dos consumidores posicionaram-se a favor, 90% mostraram-se interessados na utilização da sala de chuto e 72% sugeriram que as salas se localizassem junto aos bairros de venda e de consumo. As razões mencionadas apontam para as melhorias do consumo em termos de saúde e higiene e mesmo para o abandono das ruas, locais associados à “sujidade” com “sangue e seringas”. O inquérito, proposto pelo PS e pelo movimento de Rui Moreira, surgiu depois da rejeição da proposta do Bloco de Esquerda para a criação de uma sala de chuto experimental. Em Lisboa, a câmara vai avançar com a implementação de três salas de consumo assistido.
Manuela também considera que as salas, “onde as pessoas pudessem consumir de uma forma mais digna”, são uma medida viável e que deveriam ser abertas ao público, ainda que constituíssem um projeto piloto. Mas lembra, ainda, que não existe uma solução milagrosa para o problema multifatorial. “Não é só o consumo de drogas que está em causa. A questão é bem mais complexa. O que as pessoas não compreendem é que estes indivíduos não estão desintegrados, mas, sim, integrados numa outra realidade, que não é a normativa. Por isso, também deveria haver respostas reforçadas e sérias no âmbito do apoio social a esta fração da sociedade.” – explica a coordenadora da equipa de rua Rotas com Vida.
Salas de chuto: 98% dos consumidores posicionaram-se a favor, 90% mostraram-se interessados na utilização.
Além disso, Manuela Moreira aponta as falhas das soluções apresentadas pelo sistema a longo prazo. “Tentamos que os utentes voltem a ter vontade de tomar um banho, de comer e de se cuidarem. Muitas vezes, fazemos a ponte com a Casa de Vila Nova para que eles possam ter onde pernoitar. Mas aquilo que acontece, com o tempo, é que a seguir parece que não há mais nada e esta população cai no vazio outra vez.” – lamenta. Contudo, a coordenadora compreende as dificuldades da reinserção dos toxicodependentes nos aspetos da vida social “normativa”. A média de idades dos consumidores, que ronda os 45 anos, complica a entrada no mercado de trabalho, principalmente para os que têm uma experiência profissional precária. Por isso, não há uma fórmula resolvente para estruturar de imediato a vida dos toxicodependentes.
A toxicodependência é um problema que vai além das drogas e dos aspetos que estão à superfície. Para os que enfrentam as ruas do tráfico e do consumo, o trabalho é delicado, devido às condições voláteis que encontram no terreno. “Quando vamos para a rua, nós vamos para a casa dos outros.” – diz Manuela. Para a integrante da equipa Rotas com Vida, é preciso conhecer as regras e dirigir-se aos utentes com transparência e honestidade, para que se crie uma relação de confiança genuína. A abordagem da equipa de rua é sempre no sentido de “ajudar” e não de se apresentarem como uma “ameaça”. “Muitas vezes ouvi dizer: «Se eu hoje estou aqui, é porque vocês estão ali acima»”, refere Manuela Moreira, enquanto recorda situações limite.
14 751: Média de seringas trocadas por mês, em 2017.
É difícil, segundo a coordenadora da Rotas com Vida, “ir para casa e desligar”, depois de assistir a situações “sempre negativas”. A equipa de rua não consegue apagar as memórias que a maior parte da cidade não vê e desconhece. Na opinião de Manuela Moreira, a questão da toxicodependência nos vários bairros ocidentais do Porto não pode ser tratada se o sistema olhar para os utentes como números. Mas é importante, também, olhar para as estatísticas para perceber a dimensão do que se pretende minimizar. Por ano, passam pelo serviço cerca de 1500 indivíduos, com uma média mensal de 742 utentes, em 2016, e de 679, em 2017.
845: Média das folhas de papel de prata trocadas por mês em 2017.
A demografia do vício é complexa, mas sabe-se que a grande maioria dos utentes é do sexo masculino – 80%. A média de idades dos consumidores situa-se nos 43 anos e a droga mais utilizada é a cocaína. A heroína é a substância mais consumida por utentes mais velhos, que se iniciaram no estilo de vida durante os anos 70 e 80. 11 178 seringas foram trocadas mensalmente, em 2016, e, no ano seguinte, foram contabilizadas 14 751 trocas por mês. Já as folhas de papel de alumínio foram pedidas 920 vezes por mês, em 2016, e 845, em 2017. O número médio mensal de lanches distribuídos foi de 3720, em 2016 e em 2017.
Os números relativos à reestruturação do estilo de vida e à reinserção na sociedade dita “normativa” não são tão animadores. Mensalmente, em média, cerca de 20 utentes são encaminhados para estruturas da rede assistencial, tais como hospitais, consultas de seguimento de infeciologia, consultas no CRI (Centro de Respostas Integradas) e na Casa de Vila Nova.
Site: Entretanto
https://labs.mil.up.pt/blogs/entretanto/2018/01/11/equipas-de-rua-uma-dose-ou-uma-injecao-de-seguranca/
Nenhum comentário:
Postar um comentário