segunda-feira, 18 de novembro de 2013
A PORNOGRAFIA DA REVANCHE VINDO COM TUDO
Fran, de Goiânia, entrevistada pelo Fantástico
Assim que chegou ao
 prédio, Francine (não a de Goiânia), uma menina de 20 anos, estudante 
de Direito numa faculdade particular, em Marília, SP, foi alertada por 
um colega que o nome dela estava "nos quatro cantos da faculdade". Ela 
respondeu que não devia nada a ninguém e foi a sua aula. 
As duas primeiras 
aulas foram tranquilas, mas, no intervalo, às 21 horas, trezentos 
alunos, a maior parte do curso de Direito, acumularam-se nos corredores.
 Queriam invadir a sala onde estava Francine. Queriam ver "a vagaba da 
internet", chamá-la de prostituta, dizer que eram os "próximos da fila",
 atirar preservativos nela, mostrar cartazes de "tire aqui a sua senha".
A polícia foi 
chamada e teve que usar gás de pimenta para dispersar a multidão e 
permitir que Francine saísse da faculdade. Uma estudante explicou para a
 reportagem: "Ela não seria linchada, ninguém ia agredi-la fisicamente. 
Se a polícia não chegasse, no máximo ficariam passando a mão na bunda 
dela". Certo. Como já dizia Simone de Beauvoir, “O opressor não seria 
tão forte se não tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos”.
Outra estudante 
falou com a reportagem: "Eu mesma passei as fotos para várias pessoas. 
Ela é uma safada -- e com aquela cara de santa. Eu não transaria com 
dois caras, não acho certo. Um homem até pode escorregar, uma mulher 
não. Agora está posando de vítima. Uma pessoa normal, que tem sua 
dignidade, não faz o que ela fez. A única solução para ela é sair da 
cidade".
Qual foi mesmo o terrível crime de Francine, que fez com que ela quase fosse linchada na faculdade
 onde estudava? É que fotos dela fazendo sexo com dois homens foram 
parar numa rede social. Sexo com dois ou mais homens é a coisa mais 
comum nos filmes pornôs. Filmes pornôs que, imagino, os colegas de 
Direito de Francine consomem com frequência. Mas, se é uma garota 
próxima a eles que faz isso, ela merece ser xingada.
Por muito pouco Francine não teve sua vida destruída. Alguns dias depois, um aluno da mesma universidade confessou à polícia ter distribuído as imagens, e admitiu que se tratava de fotomontagem.
Este caso não 
aconteceu ontem, se bem que podia ter acontecido, porque toda semana são
 divulgadas notícias desse tipo. Aconteceu em 2006, sete anos atrás. A 
rede social mais conhecida, na época, era o Orkut. Fora isso, não parece
 ter mudado muita coisa.
Ontem uma aluna da USP, Thamiris, publicou um texto
 contando como foi ameaçada e perseguida pelo ex-namorado Kristian. É 
uma história tão comum que chega a ser banal -- exceto se é você quem 
está sendo a vítima da vez. Kristian não aceitou o fim do namoro e 
decidiu se vingar. Virou stalker, enviou centenas de mensagens 
para Thamiris. Em julho, passou a ameaçar divulgar fotos e vídeos que 
ele tinha dela nua. Quando ele a ameaçou de morte, ela fez um boletim de
 ocorrência.
No dia 31 de 
outubro, bem no Halloween, Kristian colocou algumas fotos de Thamiris 
nua em sites pornôs e "de putaria". Havia arquivos com o nome dela para 
download. Ela então percebeu que estava sendo vítima de um crime (sim, é
 um crime, não é uma brincadeirinha qualquer; inclusive, é punível com a
 Lei Maria da Penha, mesmo que seria bom se houvesse uma lei específica 
para criminalizar este tipo de atitude) cada vez mais frequente, o revenge porn (pornografia da vingança, ou de revanche). 
Talvez a novidade 
deste caso é que Thamiris pediu ajuda aos pais de Kristian, e recebeu 
como resposta: "Eu posso te prometer que suas fotos não irão ser 
publicadas na internet então fique tranquila. Peço porém que não fique 
mandando sms nem provoque meu filho. Repense na possibilidade de retirar
 a queixa para seguir o rumo de cada um normalmente. Procure não 
aparecer pra ele, não marque encontros, bloqueie de onde for possível 
para que não te ligue, não responda NADA e evite contato com ele. Dessa 
forma, ele logo irá te esquecer e encontrará outra garota mais 
merecedora".
Bom, até isso é 
típico. Segundo a família, é Thamiris que está provocando e perseguindo o
 pobre Kristian. Basta ela se afastar que ele encontrará um novo amor 
(resposta da Thamiris: "Espero mesmo que o seu filho encontre outra 
garota mais 'merecedora'. Só tenho pena caso ela resolva terminar o 
namoro com ele"). Esse pai não deve saber que boa parte dos stalkers continua perseguindo a ex mesmo depois de ter um novo relacionamento. 
Toda solidariedade a
 Thamiris. E torço aqui para que Kristian se ferre bonito. Não, que eu 
tenho que ser uma feminista boazinha. Que ele responda pelos seus atos.
Ontem o Fantástico passou uma curta mas muito boa reportagem sobre este fenômeno. A matéria fala sobre Julia,
 menina de 17 anos do Piauí que se suicidou depois que um vídeo que fez 
ter sido divulgado. Diz a mãe de Julia: "Todo adolescente tem direito de
 ser inconsequente. A imagem da minha filha é uma violação". 
O programa também entrevistou Fran, a moça de Goiânia que teve sua vida virada de cabeça pra baixo
 após ter imagens suas divulgadas, quase certamente pelo ex-amante, que 
obviamente nega. Uma perita coloca em palavras o que todxs sabemos: que 
quase todas as vítimas da pornografia de revanche são mulheres. Por que 
será?
Olha só, recapitulando, porque não é difícil de entender:
- Fazer sexo não é 
crime (a menos que seja não consensual ou com crianças, mas aí é estupro
 e pedofilia, e tem menos a ver com sexo que com violência e poder). Nem
 fazer sexo fora do casamento é crime. Pode ser imoral,
 baseado nos seus valores, mas não é ilegal. E, a menos que você seja 
uma das pessoas envolvidas, você não tem nada a ver com isso.
- Não importa se é 
mulher, se é homem, se é mulher com homem ou homens, ou homem com homem,
 ou mulher com mulher: transar continua não sendo crime. Se você acha 
que deve vilanizar alguém que faz sexo, você tem sérios problemas.
- Filmar ou se 
fotografar fazendo sexo não é crime. Eu particularmente não recomendo, 
devido a essa modalidade de pornografia de revanche. Tem coisas 
relacionadas a sexo que são perigosas: transar sem camisinha, por 
exemplo; acreditar que aquele carinha tão gentil e carinhoso não vai 
mostrar suas imagens íntimas pra ninguém. Infelizmente, ainda vivemos 
num mundo em que mulher que faz exatamente o mesmo que homem faz -- sexo
 -- será mal falada. Se tiver fotos pra provar que ela fez sexo, então, é
 só divulgá-las. Outros homens a chamarão de prostituta, perguntarão 
quanto ela cobra, e, se a virem pela frente, talvez joguem camisinhas 
nela (camisinhas que eles imploram pra não ter que usar com suas 
parceiras). Agora, de novo: apesar de arriscado, se filmar fazendo sexo 
não é crime.
- Divulgar sem permissão fotos ou vídeos de alguém fazendo sexo é
 crime. Aliás, nem precisa ser fazendo sexo. Qualquer pessoa que já deu 
entrevista pra TV ou foi vítima de uma pegadinha de um desses programas 
que exploram a miséria humana sabe que você tem que assinar um papel 
permitindo que sua imagem seja divulgada. Porque a imagem é sua. 
Quando eu era 
adolescente, na primeira metade da década de 80, eu tinha uma má 
reputação em alguns círculos por dois motivos: um, por jogar futebol de 
praia com homens (eu só podia ser lésbica);
 dois, por fazer sexo (com homens, alguns até que eu conhecia jogando 
futebol) sem querer namorar. É lógico que eles estavam me usando (não eu
 usando eles, ou melhor, ninguém usando ninguém, só ambos se 
divertindo). É lógico que eles não iriam respeitar uma garota que quisesse transar com eles (é, essa lógica também me escapa). É lógico que eu merecia ser mal falada por fazer sexo!
Naquela época não 
existia telefone celular nem internet, muito menos câmeras em telefones.
 As pessoas só podiam falar mesmo. E como falavam! Mas, sabe, isso faz 
três décadas. A virgindade feminina ainda era tabu. Ainda se considerava
 aceitável que homens matassem pela honra deles. Óbvio que tudo mudou de lá pra cá. 
Mudou
 mesmo? O padrão duplo de sexualidade, que eu já combatia nos anos 80, 
parece seguir firme e forte hoje. Eu lembro de discutir com muita gente.
 Eu lembro de nunca ter me calado, de falar que eu tinha direito de 
fazer sexo sem compromisso sem ser julgada. Que eu merecia tanto 
respeito quanto meus parceiros mereciam respeito. A gente estava fazendo
 a mesma coisa, oras! Por que o sujeito que transava comigo era visto 
como um garanhão, e eu era vista como uma puta?
Por que estou usando os verbos no passado?
Lembro de um post
 que escrevi sobre um caso que me chocou, em novembro de 2008, alguns 
meses depois de ter começado este blog. Era o caso de uma menina de 15 
anos que havia sido estuprada numa festa em Joaçaba, SC. Ela estava 
bêbada, passando mal, quando foi levada ao banheiro por três "amigos". 
Um deles a estuprou. Os outros dois, aguardando sua vez, filmaram a 
cena. Alguns dias depois, eles divulgaram as imagens na internet. 
O que me chocou 
naquela ocasião foi eles terem filmado e divulgado um estupro. Mas, mais
 do que isso, foi o número de rapazes procurando o vídeo na internet 
assim que a notícia foi publicada. Um vídeo de estupro! Os caras não tinham problema nenhum em assistir, e em ajudar a espalhar, um vídeo de estupro.
Semana passada eu estava vendo a excelente terceira temporada da série American Horror Story. Logo no primeiro episódio, acontece o estupro coletivo horrível de uma moça. Alguns frat boys põem alguma coisa em sua bebida, ela desaba, eles a estupram. E também a filmam sendo estuprada. Isso está se tornando cada vez mais comum. Mas por que os caras filmam um estupro? Pra se exibir. E pra envergonhar a vítima. 
Pois
 é. Em pleno século 21, ainda vivemos num mundo em que muitos homens não
 sentem vergonha em estuprar. E em que mulheres estupradas são acusadas e
 xingadas. Um mundo em que homens orgulhosamente divulgam as cenas do 
estupro que cometeram. 
Pois
 é. Em pleno século 21, ainda vivemos num mundo em que muitos homens não
 sentem vergonha em estuprar. E em que mulheres estupradas são acusadas e
 xingadas. Um mundo em que homens orgulhosamente divulgam as cenas do 
estupro que cometeram. 
Se
 não há solidariedade nem com vítimas de estupro, não vai haver com 
moças que se permitem filmar ou fotografar fazendo sexo consentido com o
 namorado. E depois dizem que o feminismo não tem mais motivo de 
existir! É um mundo muito machista este em que mostrar imagens de uma 
mulher transando é uma excelente forma de vingança. 
Pensando
 bem, não há nada de estranho com Kristian ter postado fotos nuas de 
Thamiris bem no Dia das Bruxas. Pelo jeito, em muitos sentidos ainda 
vivemos na Idade Média. Numa época em que mulheres são jogadas na 
fogueira por fazerem coisas tão banais. 
Fonte: Escreva, Lola, escreva
http://escrevalolaescreva.blogspot.com.br/2013/11/a-pornografia-da-revanche-vindo-com-tudo.html




















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