terça-feira, 8 de abril de 2014

ECA, ABRIGOS E SUBJETIVIDADES

ENTRE EFEITOS E PRODUÇÕES: ECA, ABRIGOS E SUBJETIVIDADES 



Maria Lívia do Nascimento 
 Universidade Federal Fluminense – UFF - Brasil 
Alessandra Speranza Lacaz 
Universidade Federal do Espírito Santo – UFES - Brasil 
José Rodrigues de Alvarenga Filho 

Universidade Federal Fluminense – UFF - Brasil


"O discurso predominante nas entrevistas nos falava constantemente da permanência de
práticas referentes à lógica de internação nos abrigos. Isto é, apesar de o ECA ter sido
promulgado no ano de 1990, a proposta se encontra distante da realidade dos abrigamentos,
abrindo espaço para pensarmos que o abrigo tem sido um dispositivo tanto protetor quanto
violador dos propalados direitos da criança e do adolescente, já que, apesar de protegê-los de
situações que causam dano, infringe a lei por outros percursos. Alguns pontos importantes
como a separação de grupos de irmãos, o trabalho de reintegração familiar, de convivência
comunitária, entre outros, são difíceis de ser colocados em prática quando outras questões
como a sexualidade, a separação por idade e sexo, a resistência de vizinhos em ter uma casaabrigo
nos arredores de suas moradias e a falta de equipe entram em cena. A lei, portanto, não
deu e não dá conta de mudar a multiplicidade de práticas que se configuram num plano micro
do cotidiano, e, muitas vezes, permanecem ainda arraigadas e atravessadas pelos processos de

trabalho que eram exercidos nos complexos de internação."

"Diferentemente, na sociedade disciplinar o exercício de poder não está localizado nas
mãos de um soberano, mas circula por toda a sociedade. As punições não são mais violências
ou torturas cometidas contra o corpo de um condenado. Como aponta Foucault (2004), na
nova economia punitiva surgida na Europa em meados do século XIX, a punição torna-se,
através da instituição da prisão, uma privação de liberdade. Se alguém comete um crime, não
paga sofrendo um suplício, mas é punido com a pena de ter sua liberdade cerceada através de
seu encarceramento numa prisão."

"No que concerne especificamente ao contexto da América Latina, vivemos o momento
em que um “senso comum punitivo” (BATISTA, 2003) paira sobre nossa sociedade. Por esse
viés, há um clamor público por punição e, ao mesmo tempo, há uma judicialização4 das
relações sociais. É como se a punição se transformasse na nova panaceia que solucionará
todos os problemas da sociedade. Dessa maneira, movimentos de “lei e ordem” ganham, cada
dia, mais força (WACQUANT, 2008).
Nesse sentido, a lógica punitiva que paira sobre nossa sociedade se faz presente,
também, nos abrigos. Os entrevistados expressaram o quanto se sentiam ameaçados pelo
Ministério Público (MP), que age de forma bastante punitiva sobre os técnicos e educadores,
em constante vigilância de suas práticas. Por sua vez esses profissionais, de forma encadeada,
incorporam esta lógica da punição em suas relações com os abrigados e de maneira repressiva
e coercitiva vão, muitas vezes, definindo um cotidiano autoritário e ameaçador no interior dos
abrigos. Um exemplo dessa hierarquia de controle aparece nas falas que narram os episódios
de brigas entre os abrigados. Dizem os entrevistados que pairava uma constante preocupação
com essa questão, já que as brigas podiam produzir marcas, machucados que configuravam
punição imediata do MP à equipe.
Ainda analisando a capilarização da lógica punitiva no interior dos abrigos, é possível
dizer que os educadores se veem sem ferramentas para administrar o cotidiano e, dessa forma,
vão criando maneiras cada vez mais sofisticadas, mais invisíveis de castigar. Por exemplo,
dando preferência a uns e não a outros para certas situações, demorando a fornecer remédios e
material de higiene pessoal (que na maioria das vezes fica sob controle dos educadores), ou
ainda não permitindo visitas da família."

"No entanto, nem todas as entrevistas apontaram situações punitivas dessa ordem.
Foram também apresentados discursos que indicam escapes a um modo único, instituído de
abrigo. Em duas das entrevistas, os profissionais falam da ocorrência de assembleias com
participação das crianças, adolescentes e funcionários nas decisões da casa. Referem o uso de
tal dispositivo como um espaço democrático de conversas e discussões que determinavam o
funcionamento da casa, mostrando a possibilidade de se criar estratégias que escapem à lógica
de controle e punição.

Mas é uma experiência assim muito boa quando você começa a construir um espaço
onde dá direito de voz a todos e não só a um grupo, só às educadoras ou só à equipe
técnica, mas quando você tenta fazer com que esse espaço seja todo tempo avaliado
por todos os atores que estão ali dentro. É o ator que está ali dentro, não são só os
educadores e os meninos, mas é o vizinho, é a escola, são os voluntários, quer dizer,
cada pessoa que está envolvida direta ou indiretamente com aquele espaço, com
aquele abrigo. (...) Consegue ver ou fazer com que a criança passe aquele período no
abrigo da forma mais digna possível: dando direito de voz a ela. E o direito à voz é o
direito de querer ficar e de não querer ficar também, de querer sair do abrigo. Então,
eu sempre falei com as crianças e com os educadores que isso aqui não é uma
prisão, aqui é um espaço de acolhimento, onde o menino tem que estar aqui porque
ele gosta. Porque na hora de ir para escola, ele vai para escola sozinho. Ele tem que
ir para escola e tem que voltar para o abrigo (fala de um entrevistado).

Um segundo ponto de análise, que não se descola da lógica de controle mais
sofisticado anteriormente discutido, mas, ao contrário, faz parte dela, diz respeito justamente à
medicalização e à psiquiatrização das crianças e adolescentes abrigados. Em uma das
entrevistas, a psicóloga diz que todas as adolescentes abrigadas estavam sendo medicadas e
acompanhadas por psiquiatras. Todas tinham diagnósticos de transtornos.

Era tanta medicação, tanta medicação que os educadores tinham que dar, que eles
começaram a se perder. Era tanta menina, tanto remédio, que a gente bolou um
quadro, esquemático, “fulana, tal hora, tal remédio”, pra elas conseguirem visualizar
e não perder a hora do remédio dela, de tanto remédio que era (fala de um
entrevistado).

Eu comecei a perceber, nos meus últimos períodos de abrigo, que muitas meninas
estavam sendo encaminhadas para serviço de saúde mental. (...) E, elas começaram a
entrar nesse rótulo de paciente psiquiátrico. Eram muitas, por conta das brigas que
rolavam lá dentro, elas agressivas, era surto, eu lembro dos prontuários de lá...(...)
todas surtavam todos os dias lá, todo dia uma surtava, e era pegar lençol e amarrar."

"Narrativas como essas estiveram muito presentes nas falas dos entrevistados e
chamaram a atenção pela proximidade com o discurso da falta de controle e domínio que os
educadores e técnicos sentem diante de situações cotidianas como as de expressão da
sexualidade (namoro, sexo, gravidez), agressões entre os abrigados, evasões, insubordinações
e desobediências. Se as formas de controle têm se tornado mais sutis, como afirma Deleuze
(1992), no espaço dos abrigos a medicalização tem sido um dispositivo dos mais eficazes
nessa direção.


"A medicalização não é um processo presente somente nos abrigos. Faz parte de um
movimento historicamente construído na relação entre a medicina e a sociedade. Ao longo da
modernidade, o saber médico foi se capilarizando pelas práticas cotidianas, criando
dispositivos de higiene e prevenção cada vez mais presentes em nossas vidas. Hoje a
medicalização pode ser entendida como um desses dispositivos, usado como técnicas de
aprisionamento dos corpos, controlando-os de formas cada vez mais sofisticadas, como é o
caso do uso de fármacos.

É um aprisionamento de qualquer maneira, sai do perfil do abrigado e entra no perfil
do paciente psiquiátrico, não consegue sair disso... (fala de um entrevistado).
Nessa dela brigar muito, começaram as internações, por ela ser muito violenta. Ela
começou a ser levada para o D. Pedro II. Na primeira internação já virou paciente
psiquiátrica, passou a tomar remédio controlado, e tudo que ela fazia era motivo
para ser levada para o Pedro II. Ela começou então com uma história de internação.
Foi a fase que ela ficou mais calma, mas que acabou com ela, porque ela tinha esses
momentos de agressão mas era também muito criativa, muito engraçada. E isso foi
derrubando ela. Eu a vi outro dia na rua, ela estava cronificada (fala de um
entrevistado).

O terceiro ponto de discussão proposto pela análise das entrevistas diz respeito à
produção de corpos tutelados nos abrigos, isto é, à construção ou não de um trabalho que vise
à autonomia dos abrigados, especialmente dos adolescentes. Sabemos que, apesar do ECA
colocar o abrigo como provisório, muitas crianças e adolescentes ficam até os 18 anos.
Quando saem, se deparam com a situação de não terem onde ficar e não estarem preparados
para o trabalho, isso porque, no tempo em que ficaram abrigados, foram excessivamente
tutelados e aprisionados num modelo que os define como não qualificados para gerir suas
próprias vidas. Em muitos dos relatos, roupas, materiais de higiene que contivessem álcool,
brinquedos e até presentes ficavam sob a guarda dos educadores, tirando a liberdade e a
autonomia das crianças e jovens para cuidar de seus objetos e fazer escolhas. Ir sozinho para a
escola, namorar, escolher uma profissão, comer em horários diferentes dos outros, negociar
isso de alguma forma, muitas vezes parece um problema para os coordenadores e educadores
dos abrigos, tornando ainda mais complicada e tensa a convivência.

Elas iam para escola acompanhadas, na Kombi. Nós enchíamos a Kombi e ia a
galera toda, o que era um sofrimento para elas, elas pediam muito para o motorista
parar antes da entrada da escola. Elas odiavam aquela Kombi (fala de um
entrevistado).
Tudo elas faziam acompanhadas, nunca saíam sozinhas. Só as que estavam no
abrigo há muito tempo que às vezes iam ao mercado ou pediam para ir a algum lugar. 
Elas adoravam, pediam para ter algo para fazer na rua, mas a regra do abrigo
era sempre sair acompanhada, em eventos, tudo... (fala de um entrevistado)."

"Como vimos na fala de um entrevistado referindo-se as
crianças abrigadas: “tudo elas faziam acompanhadas, nunca saíam sozinhas”. Nesse caso,
apesar de as crianças gostarem e pedirem para sair sozinhas, as regras instituídas no abrigo
impediam as mesmas de experimentar a liberdade e autonomia de andarem sozinhas pelas
ruas e escolherem, também, por onde andar."

Su: Sou obrigada a comentar q é arriscado. As relações de proximidade não se estabelecem como em uma família. Há crianças que se envolvem com o tráfico ou evadem. Como dar conta de todos esses casos?

"Por outro lado, os modos pelos quais os abrigos funcionam tem relação direta tanto
com a dinâmica de forças que atravessavam nossa sociedade no momento da construção do
ECA, impondo determinados contornos à sua elaboração, quanto com a maneira pela qual
suas determinações legais são exercidas diariamente. Colocar em análise o funcionamento dos
abrigos significa, também, problematizar a sociedade na qual os mesmos emergem."

"Parece-nos que o melhor modo de pensar essa questão é entender que existe uma
construção subjetiva instituída, que torna os abrigos como locais de tristeza, de desafeto, de
abandono, de vidas fracassadas. Ao nos perguntarmos sobre essa subjetividade hegemônica,
que implanta a crença em destinos pré-construídos para os abrigados, não podemos deixar de comentar sobre a construção histórica do que é entendido como “cuidado correto de crianças”.

Com a ascensão do modelo burguês de família, esta se tornou o lugar obrigatório, eficaz e
desejado de “proteção à infância”. É somente nela que a boa criação pode ocorrer. É somente
no seio desse “ninho de amor e cuidado” que o sujeito pode se desenvolver adequadamente.
Mas se nos pautamos em uma análise histórica, nada disso nos parece evidente e natural.
Podemos, pois, enunciar que a proteção, a família, o bom desenvolvimento infantil são
construções sociais surgidas no Estado moderno, no século XVIII, com as novas
configurações da família burguesa e a implantação da ordem jurídica, sobretudo no que diz
respeito às determinações legais sobre a guarda de crianças."


Fonte:
online.unisc.br/seer/index.php/barbaroi/article/download/1521/1315

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